A Demanda dos filhos de Turenn

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

 
Lugh esperava o retomo de seu pai. Como não voltasse, decidiu ir ao seu encalço. Ele passava pela Campina de Muirthemne. A terra, indignada, testemunha da morte de Kian, falou a Lugh e contou-lhe tudo. Ele exumou o pai, e confirmou a verdade. Constatou a violência praticada e chorou sobre seu corpo ultrajado e penalizado pela terrível morte. Imprecou contra os autores da morte de seu pai, assassinos impiedosos, sem lealdade nem honra, que de modo perverso e vil mataram quem estava só e indefeso. Chorou, lamentou e, nada mais a fazer, devolveu o corpo ao túmulo, levantou um pilar com seu nome escrito em ogam, e voltou para Tara.
Todo o povo de Danna estava reunido no palácio quando Lugh ali entrou. Os três filhos de Turenn também estavam presentes. Ele então tocou o sino dos chefes, com o qual os gaélicos pediam silêncio na assembléia, e então disse: Povo da tribo da deusa Danna, pergunto-lhes: que vingança mereceria quem tivesse matado vosso pai de forma vil e desonrosa, aviltando seu corpo e ultrajando seu valor de guerreiro?
Um grande aturdimento tomou conta da assembléia, e Nuada, o rei, disse: Certamente, não está nos dizendo que é seu pai que foi morto assim?
Foi. A terra onde ele foi sepultado revelou-me. Mataram Kian, meu pai, com pedras e paus. Seu corpo traz marcas de morte impiedosa. A pele ruiu, os músculos foram espedaçados e sua mortalha é uma massa de sangue coagulado. Vejo aqui nesta assembléia os autores de sua morte, e eles sabem melhor do que eu a maneira como o mataram.
Se alguém matasse meu pai desse modo, eu não me contentaria em tirar a vida do assassino de uma vez. Arrancaria todos os dias um membro de seu corpo para que ele sofresse uma morte lenta e agoniante, disse Nuada, e todos os demais concordaram, entre eles os filhos de Turenn.
Aqueles que mataram meu pai concordaram com essa sentença de morte! gritou Lugh. Tenho todos como testemunha. Eu, porém, declaro que meu desejo de vingança se arrefece mediante a punição que desejo lhes impor. Exijo, em vez de lhes dar morte igualmente vil, um pagamento de resgate aos três que cometeram esse ato indigno contra meu pai. Juro, não agirei contra o rei violando as leis nem a proteção real concedida a todos que estão em seu palácio, mas, se recusarem a minha proposta de resgate, não sairão daqui até que uma solução seja encontrada para esse caso.
Se fosse eu o assassino de seu pai, disse Nuada, eu me consideraria afortunado de me ver poupado de uma vingança terrível em troca do pagamento de um resgate.
Os filhos de Turenn se consultaram entre si: Lugh sabe que fomos nós que matamos seu pai. Muito mais conveniente será admitir nossa culpa, pois sua vingança será terrível se nos esquivarmos, concordaram entre si Iuchar e lucharba. Brian, porém, não queria confessar, temendo que Lugh retirasse o oferecimento de um resgate e pedisse sua morte. Mas seus irmãos o forçaram a confessar, e ele acabou dizendo: Ninguém ignora, é Lugh, o desafeto que se interpunha entre Kian, seus dois irmãos e nós. De nada adianta negar que o matamos, pois vejo que você está muito bem informado de tudo. Estamos prontos a pagar o resgate pedido.
Muito bem, disse Lugh, declaro perante esta assembléia o vosso resgate. Eis o pagamento que exijo: três maçãs, uma pele de porco, uma lança, dois cavalos e um carro, sete porcos, um cão caçador, um espeto de assar e três gritos numa colina. Se acharem muito, declarem sua objeção. Eu examinarei quais entre essas exigências posso retirar. Se estão de acordo, digam e jurem compromisso de cumprimento imparcial do resgate nesta mesma hora e partam em demanda dos objetos que pedi.
Parece insignificante, disse Brian, mas temo que sob exigência tão mínima se oculte uma vingança maior.
Não penso que seja pouco o que exijo, disse Lugh, e declaro perante esta assembléia que não procurarei outra vingança. Se lhes dei minha garantia, agora peço que façam o mesmo.
Não pode duvidar de nós. Não somos porventura a garantia de um resgate maior do que esse que exige? disseram os irmãos.
Guerreiros tão destemidos deviam conciliar atos de semelhante valia, disse Lugh. Não é o que tem demonstrado vossos atos. Não merece confiança quem agiu de modo tão desonroso. Ademais, conheço vossa fama. Tenho noticias de que, embora temíveis e corajosos guerreiros, já falharam muitas vezes em cumprir promessas feitas. Saibam que coragem e valentia não bastam para fazer o valor de um guerreiro. É preciso mais, juntar atos e pensamentos ajustados.
A declaração de Lugh perante a assembléia era constrangedora para os filhos de Turenn. Esforçaram-se para manter a cabeça erguida e aceitaram a exigência jurando, diante de Nuada, rei de Erin; Bove Derg, filho de Dagda, e de todos os nobres da tribo de Danna, que cumpririam o acordo.
Lugh levantou e disse: E então hora de declarar os pormenores do resgate que lhes exigi e que deverão ser rigorosamente cumpridos conforme as minhas determinações. As três maçãs são aquelas que frutificam no Jardim das Hespérides, situado no Leste. Não há outras que se comparem. São únicas em beleza e magia. Além da cor de ouro e sabor de mel, possuem a propriedade da cura imediata de todo tipo de mal que aflige o homem. Uma só mordida basta para fazer retroceder o mal. O guerreiro ferido em batalha ou o homem afligido por doenças fatais veem sua saúde e vigor voltarem instantaneamente. Uma vez mordida, recompõe-se e ressurge inteira, renovada em todo o seu esplendor. O guerreiro que a possuir poderá levar avante qualquer façanha. Embora destemidos guerreiros, vocês terão grandes dificuldades nessa empesa. Uma profecia amplamente conhecida revelou que três guerreiros do Oeste entrariam no Jardim das Hespérides para conquistar as maçãs à força. O rei preveniu-se e escolheu guardas temíveis para vigia-las noite e dia, e há muito estão preparados para recebê-los.
A pele de porco é outra peça mágica de grande valor. Está na posse do rei Tuis da Grécia. Esse porco, ainda vivo, tinha a propriedade de transformar em vinho a água do rio ou fonte onde passasse. Durante nove dias durava essa magia, e o ferido ou doente que bebesse desse vinho, mesmo às portas da morte, ficava inteiramente curado. As propriedades mágicas do porco estavam em sua pele, foi o que faiaram os magos. O rei mandou matá-lo e guardar a pele encantada. Previnam-se. Terão muita dificuldade para consegui-la.
Outro objeto mágico que não será fácil obter é a famosa lança envenenada de Pezar, rei da Pérsia. Tem o nome de Furiosa. O guerreiro que a possuir, pode executar façanhas impensáveis no campo de batalha. Em tempos de paz, é preciso deixar sua ponta mergulhada em água para que sossegue sua fúria matadora.
Os dois cavalos e o carro estão em Sigar, na Sicília. Pertencem ao rei Dobar. Também serão imensas as dificuldades para obtê-los. Não há carro mais belo; os dois cavalos trotam tanto em terra como no mar. São incomparáveis em leveza, velocidade e força.
Os sete porcos pertencem a Asal, rei dos Pilares Dourados. Possuem a propriedade de manter a saúde. Quem deles se alimenta jamais fica doente. Mortos num dia, ressurgem no outro inteiros e completos.
O cão caçador está em Iroda. Seu nome é Fetinis. Brilha como o sol. Todos os animais caem instantaneamente em sua presença desfeitos de qualquer poder sobre ele.
O espeto de assar esta na ilha de Fincara. Pertence às mulheres guerreiras que ali habitam. São em número de 150 e o guerreiro que se aproximar não tem salvação. Uma só deias enfrenta três de uma vez em combate corpo-a-corpo e são imbatíveis.
O último ato do seu resgate será dar três gritos na colina de Midkena, ao norte de Lochiann. Midkena e seus filhos iniciaram meu pai na arte das armas e o amam ardorosamente. Mesmo que esse resgate a mim devido os livre de minha vingança, vocês não escaparão da sua. Além do mais, sua geasa não os permite deixar que alguém grite no topo de sua colina.
Eis tudo que deverão cumprir para resgate da morte que deram a Kian, meu pai, concluiu Lugh.
Brian, Iuchar e lucharba, flihos de Turenn, escutaram em silêncio. Sua perturbação aumentava à medida que Lugh ia relatando os pormenores da demanda que teriam de empreender. Agora, terminada a longa lista de Lugh, não opuseram palavra alguma, abandonaram em silêncio o salão e rumaram para a casa de seu pai.
O pai escutou-os contar sobre a dura demanda que tinham de cumprir e quedou-se em prolongado silêncio. Seu rosto cobriu-se de sombras, todo ele mergulhado em profundos pensamentos, e quando saiu de sua introspecção veio dizendo: Meus filhos, terríveis noticias são essas que me trazem. Temo e choro o seu destino. Penso que encontrarão a morte nessa demanda. Entretanto, foi um ato vil matar Kian do modo como fizeram, e a pena que lhes foi imposta é justa. Acontece que o Ildana exige de vocês uma façanha de proporções extraordinárias. O que ele lhes impôs só pode ser obtido pelo próprio Lugh ou por Manannan Mac Lir. Voltem à Lugh e peçam-lhe para ceder o cavalo de Manannan que está em sua posse, o das Crinas Brilhantes. Ele não recusará se, como penso, deseja que sejam bem-sucedidos. Caso recuse, peçam o barco de Manannan, o Varredor de Ondas, mais útil do que o cavalo. Como sabem, não pode recusar um segundo pedido.
Fizeram como o pai aconselhou. Foram a Lugh e disseram: A demanda que nos exigiu é tarefa que somente com a ajuda do cavalo de Manannan será possível ser cumprida. Viemos lhe pedir que nos ceda o cavalo mágico.
Esse cavalo não é meu e não posso emprestar o que não me pertence, disse Lugh.
Então nos ceda o barco de Manannan, o Varredor de Ondas.
Não posso negar esse segundo pedido. Está em Brug-na-Boyne. Deverão buscá-lo. Mas devem saber que ele lhes parecerá muito pequeno para dois homens. Não se perturbem nem façam comentários a respeito de sua pequenez. Entrem em silêncio e pronunciem apenas: O tu, barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena-te que navegue e nos leve para... E digam o nome do lugar aonde querem ir, mais nada. Acautelem a língua e não digam palavras vãs.
De volta para casa, contaram ao pai que tinham obtido o Varredor de Ondas: Ah, meus filhos, apesar desse valioso barco, essa demanda é penosa e difícil. Lugh ambiciona esses objetos mágicos para enfrentar a batalha de Moytura, e por isso cedeu o barco. Mas essa ajuda de nada valerá na busca do espeto de assar ou para os três gritos na colina de Midkena. Ah, meus filhos, são esses dois feitos que mais temo. Sinto que perderão a vida nesses dois últimos.
Os três irmãos partiram com sua irmã Ethnea para Brug-na-Boyne. Turenn ficou só, lamentando a sorte de seus filhos, pressentindo que não retomariam vivos da demanda.
Encontraram o barco na margem do rio. Seguiram as instruções de Lugh e pronunciaram brevemente: ó tu, barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que navegue e nos leve para o Jardim das Hespérides!
O barco moveu-se tomando rumo e disparou mar afora, por caminho breve, deslizando com ritmo e harmonia sobre as ondas. Ia macio, nenhum balanço, nenhum abalo, senhor das águas, imperador dos mares, corria veloz sobre o imenso dorso do oceano acalmando águas turbulentas. Não demorou quase nada, o barco os entregou ao seu destino. Desembarcaram, e ali ficou o Varredor das Ondas quieto, esperando para os levar de volta.
Temos uma jornada muito perigosa pela frente, disse Brian. Temos de estudar entre nós o melhor modo de obter o que viemos buscar.
Temos de enfrentar os perigos lutando, disseram seus irmãos. Estamos condenados a esse embate, que a essa aventura fomos compelidos pelo ato que praticamos. Para que deter nossos passos? Ou trazemos essas maçãs ou morremos. Não há mais que essas duas consequências nessa aventura.
Não, não, disse Brian. Não é assim. Devemos usar a prudência. A valentia não é inimiga da cautela. Estamos diante de uma aventura extraordinária que deve ser conduzida de maneira que nosso valor atravesse os tempos e nossa fama fique inscrita na memoria das gerações que se sucedem. Se temos de morrer, que seja de forma honrosa, e que nosso nome fique gravado com letras de valor e proclamado por toda gente, entre nosso povo e além. De outro modo, daremos oportunidade para que reprochem nosso caráter e conduta com a pecha de insensatos e tolos. Seremos bem-sucedidos se utilizarmos nossos dons mágicos em nosso favor. Vamos transmutar nossa forma humana em falcões. Com a destreza de nosso vôo e garras poderosas, poderemos escapar das flechas e lanças dos guardas e trazer as maçãs.
De fato, era um pensamento correto, concordaram todos. Brian brandiu então sua vara mágica e transformou a si e seus irmãos em belos e imbatíveis falcões. Rumaram para o jardim e sobrevoaram numa altura compatível para a investida. Mergulharam em parafuso com a velocidade vertiginosa dos falcões, desviando habilmente da profusão de flechas lançadas pelos guardas. Alcançaram as árvores com tal precisão e velocidade, que o intervalo de tempo entre a colheita das maçãs e o vôo de fuga foi tão imperceptível!, que uma ação e outra pareceram simultâneas. Em poucos minutos iam alto no céu e já nenhum perigo podia ameaçá-los.
Mas ainda não estava encerrada a aventura dos irmãos. Chegou aos ouvidos do rei a noticia de que três falcões tinham roubado as maçãs mágicas. Era preciso remediar a situação. Suas três filhas, poderosas magas, tomaram a forma de três grifos e foram no encalço dos falcões. A perseguição foi feroz, mas os falcões, usando a habilidade de seu vôo, avançaram mantendo cada vez maior distância. Os grifos, vendo que perdiam a perseguição, usaram de um último recurso: lançaram espessas rajadas de fogo sobre as aves. Foram atingidas gravemente, provocando queimaduras e cegueira.
Ah, morreremos! - disseram Iuchar e Iucharba. Ficaram em estado lastimável. Estavam certos de que não sobreviveriam. Brian tomou sua vara mágica e transformou a si e aos irmãos em cisnes e desceram no mar, desaparecendo da vista dos grifos. E assim puderam rumar seguros para o barco, Varredor das Ondas, com a primeira demanda cumprida.
Ó tu, barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que navegue e nos leve a Tuis, rei da Grécia, disse Brian, e o barco partiu cortando ondas, veloz como o vento, sutil como a pluma, leve como um pássaro planando no ar. E em breve alcançou o destino.
Não seria como bravos e temíveis guerreiros que se apresentariam ao rei. Os poetas na Grécia usufruíam de grande reputação e eram cultuados como deuses. Entenderam-se mutuamente que se anunciariam como poetas de Erin. Assim resolvidos, seguiram para o palácio e pediram uma entrevista com o rei: Somos poetas de Erin e desejamos oferecer ao rei os versos que compomos para ele, disseram. A guarda os foi anunciar. O rei estava no salão onde, reunido com seus nobres, regia um grande banquete. O momento, todo de Ócio e diversão, não poderia ser mais propício para a apresentação de bardas. O rei, envaidecido com a honra, disse: Que poetas são esses, que só de ouvirem falar de meu nome percorrem longas distâncias para cantarem em meu louvor? Traga-os, quero ouvi-los e fruir seus versos.
Os três irmãos foram conduzidos ao salão. Curvaram-se ate o chão em homenagem ao rei. Regozijas e grandes louvores e mais delicadezas para os bardos que chegavam: Juntem-se ao nosso banquete, bem-vindos, bem-vindos sejam, poetas de Erin! Dizei-nos vossos nomes. Brian, fazendo reverências, falou: Aqui viemos, grande rei, cantar a vossa gloria. Sou Brian, filho de Turenn, e esse é Iuchar; esse, Incharba, meus irmãos.
A presença de poetas vindos de terras tão distantes é uma felicidade para nós. Sentem-se à mesa e bebam as nossas felicitações e a nossa alegria!
O banquete era suntuoso, a mesa rica e próspera, as bebidas finas e aromáticas. Beberam, comeram e se divertiram partilhando do vinho da amizade entre os convivas e o rei. Depois de saciados, o ambiente impregnado de aromas alcoólicos, a alegria era geral, a satisfação e o prazer dominavam. Os poetas do rei, como era habitual, cantaram seus poemas aos presentes. O silêncio caiu sobre todos, que de olhos iluminados e embevecidos, fruíram os versos encantadores dos poetas da Grécia, sem igual no mundo.
Era preciso então que os poetas de Erin cantassem o poema que vieram trazer ao rei: Viemos aqui como poetas, é essa arte que agora devemos praticar, irmãos, disse Brian, e começou a cantar:

Cantamos tua fama, Ó Tuis.
Entre os reis, és o carvalho majestoso.
A pele de um porco como prêmio
de vossa generosidade a recompensa pretendemos.

Uma hoste tremenda e o mar bravio
E um poder perigoso a que não se pode opor:
A pele de um porco como prêmio
de vossa generosidade a recompensa
pretendemos.

É um bom poema, disse o rei; não fosse a dificuldade de entender seu sentido, maior prazer me daria.
Eu explico, disse Brian. Nós o louvamos como um carvalho acima dos reis. O carvalho excede em excelência todas as demais árvores. Assim vossa majestade excede todos os demais reis em generosidade e nobreza. "A pele de um porco como prémio" alude àquela que vossa majestade tem em seu poder, ó Tuis, e eu quero obtê-la como prémio por minha poesia. "Uma hoste tremenda, o mar bravio, a que não se pode opor", ó rei, significa que não costumamos partir sem o objeto que nosso coração deseja.
Apreciaria mais seu poema se ele não mencionasse a minha pele de porco. Não foi um verso sábio este, ó poeta de Erin! Entretanto, não me furtarei a dar-lhe a recompensa como prêmio que lhe é devido. Em lugar da pele, que de modo algum darei, farei medir três quantidades de ouro na pele que os senhores ambicionam, uma para cada um.
Que sobre vossa majestade se derramem todos os bens, ó rei! É uma nobre recompensa, disse Brian. Mas sou amante da precisão, tenho uma natureza apreciadora da medida justa, e lhe peço que me deixe assistir à medição.
Nada oponho ao teu desejo, concordou o rei, e os filhos de Turenn acompanharam os servidores ao salão do tesouro. Veio a pele para as mãos do tesoureiro, e antes que pudesse preparar-se para a medição, Brian o assaltou, derrubou-o ao chão e apossou-se da pele. Os três irmãos correram dali para a sala do banquete com a espada em punho. Os nobres ergueram-se de um salto, tomaram suas armas e a luta começou. Foi uma sangria. Os filhos de Turenn abateram a uns; outros abalaram em fuga. Afinal, o rei e Brian se enfrentaram em combate singular. Lutaram ambos com grande bravura e feroz empenho. Quem sairia vencedor, é o que no calor da refrega não se podia prever. Brian desviava-se dos golpes do rei com incrível destreza; assim como o rei, e a batalha fervia entre dois adversários iguais em valor e pericia nas armas. No meio do redemoinho de saltos e golpes, Brian desabou ao chão pesadamente. Já o rei vinha dar o golpe fatal avançando com fúria, ele rolou sobre a próprio corpo, ergueu-se e se desviou com uma rapidez calculada. O rei, surpreendido, não teve tempo de deter seu avanço e foi chocar-se violentamente contra outro alvo, a coluna logo atrás. Brian, girando os calcanhares, avançou contra o rei e enterrou a espada em seu peito. Terminada a refrega, correu com os irmãos para a orla onde o barco mágico os esperava. Pronunciou incompletamente a formula: ó tu, barco precioso de Manannan, Lugh ordena que navegue e nos leve...
O barco não se moveu. luchar gritou: Brian, para onde temos de ir agora? O barco precisa saber.
Na confusão da fuga, Brian tinha esquecido o próximo destino. Naquele momento, era-lhe difícil reunir as idéias. Tinha de tomar uma decisão rápida, e a que melhor pôde conceber é partir para uma ilha próxima, porto provisório, onde primeiro pudesse se restabelecer das feridas na luta com o rei: ó tu, barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que navegue e nos leve para a ilha de Samos. O barco deu partida, conduzindo-os suavemente pelo mar. Aportaram na ilha e Brian fez uso da pele mágica para restabelecer-se. Tomou o vinho obtico com a pele e imediatamente estava cheio de vigor, nem cicatrizes restaram, de novo pronto para a próxima demanda.
Refeito, deliberaram sobre o próximo destino. A posse daqueles dois tesouros mágicos lhes favoreciam vencer as tarefas que lhes restavam. Definiram o rumo seguinte. Agora era a lança de Pezar, rei da Pérsia, que tinham de demandar. Convinha-lhes dissimular novamente a esse rei persa a condição de poetas. Aos reis os poetas são sempre bem-vindos e por eles são amados. Não há rei que não queira um poeta ao pé de si. A capacidade de tornar as palavras belas atrai os reis e principalmente os cantos pródigos de louvores inesquecíveis que lhes são dedicados. Um rei se faz imortal na pena de um poeta, e o valor que lhe é atribuído percorre o tempo, e assim se faz eterno, imortal. Com efeito, a poesia era o que tornava os reis amados do povo. Os reis amigos não viviam sem poetas.
Ó tu, barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que navegue e nos leve a Pezar, rei da Pérsia! O barco se arrumou para tomar o rumo indicado e voou sobre as águas, seu caminho liquido, via mutante e instável. Domou as ondas, domou perigos, domou redemoinhos, e lá apartou suave e brando levando os filhos de Turenn à sua nova aventura épica. Prenderam o cabelo com fita, marca dos poetas, e desembarcaram na aria. Atravessaram as muralhas e foram à parto do palácio pedir audiência com a rei: Trazemos nossos cantares poéticos ao rei, soberano da Pérsia!
Foram recebidos. Chegaram em momento oportuno, no fim do dia, quando os reis sentam-se à mesa com seus nobres para festejar, comer, beber e alegrar-se; quando em ambientes suntuosos e fartos eles se divertem com cantores e bailarinas. Embriagantes cantos, danças eróticas e sensuais arrebatam corações, corpos e mentes, e os homens sentem-se no paraíso.
Chegaram ali no calor da festa, e entraram cantando versos para maior impressão causar nos convivas.

Não haja pesares ao nosso rei Pezar
nunca as aflições lhe definham o ato
As horas lhe guardem o melhor azar
Viva sempre amado e cultuado!
Sejam bem-vindos, poetas de Erin, possa esta noite ser de encanto e que nossa hospitalidade lhes traga alegria e prazer. Juntem-se a nós e partilhem de nossa alegria.
Comeram, beberam e se alegraram. Saciados, chegou a hora da dança, poesia e música. Um grupo de bailarinas dançou, e sua dança arrebatou todos os corações e incendiou seus corpos no fogo do entusiasmo e dos encantas mágicos da arte. Os poetas da corte cantaram seus versos, e comoveram a audiência, queda em silêncio e possuídas da alma sagrada da poesia.
Foi nesse momento que Brian levantou-se, poeta visitante vindo de longes terras para louvar o rei Pezar, e ele cantou:

Lança não há mais valorosa que a de Pezar
A batalha dos inimigos frustra letal
Nenhuma derrota pode lezar
Esse rei que vence todo o mal.

De teixo feita, nobre madeira, nunca ociosa
Sua esplêndida seta avança fatal
aclamada unânime a Furiosa
A morte certa vem afinal

Seu poema é eloquente, ó poeta, mas o senhor louva minha lança, e me escapa a compreensão desse louvor, disse o rei.
Meu senhor, soberano da Pérsia, grande rei, pretendo como prêmio por meu poema conhecer essa lança tão fabulosa, disse Brian.
É uma arma que está guardada cuidadosamente. Devem saber que sua fúria é mortal e para apaziguá-la é necessária mergulhar sua seta em água. Eu o acompanharei à sala das armas, mas saiba que é a sua condição sagrada de poeta que o faz merecer de mim tamanha concessão.
Ó grande rei, levarei comigo a imagem de sua generosidade e cantarei em toda Erin sua nobreza e valor, disse Brian. Essas palavras encantaram o rei. Sua fama correria o mundo nos versos do poeta. A imagem de sua glória atravessaria o mar e perduraria no tempo, conhecido e louvado além da Pérsia.
Contente, o rei acompanhou os irmãos para a sala de armas. Ali, Brian contou novos louvores ao monarca pela beleza e brilho de seu incrível poderia bélico: Não é nada isso tudo diante do que verá, a lança mortífera, mais poderosa que milhares de armas juntas, replicou o rei. E, cada vez mais entusiasmado, conduziu Brian para conhecer a poderosa lança. Ela estava num tanque especialmente preparado para guardá-la. A água corria constante, entrando por uma abertura e saindo por outra, renovando-se continuamente. Era espantosa, a água ao redor da lança fervia, efeito de sua fúria e ânsia de atuar em batalha.
Brian, como um felino que sorrateiramente espreita sua presa, mediu o momento oportuno para assaltar de surpresa o rei e furtar-lhe a lança. Era preciso muita destreza. Uma vez erguida da água, a sua fúria devastaria tudo ao redor: Espantoso! - exclamou Brian, o poder dessa lança é extraordinário. Gastaria de vê-la atuar...
O rei não teve tempo para replica. Brian com um movimento rápido apoderou-se da lança, e partiu em disparada. Os irmãos a seguiram logo atrás. O rei acorreu convocando guardas para a defesa. A lança nessa altura, furiosa, retorcia-se incontrolável. Um grupa de dez guardas vinha em socorro do rei. Brian, com um domínio espetacular da lança, matou todos de uma só vez; outro grupo caiu na sequencia, e depois mais outro. O rei, desesperado, quedou-se inerte. Não havia o que fazer. A lança obedecia a quem a tivesse nas mãos. Ele chorou imprecando contra si mesmo: ó, infeliz! Por que foi acreditar nesse embusteiro e grande dissimulador? Infeliz, infeliz, infeliz, repetia inconsolável, e dava tapas no próprio rosto: Perdi minha maior preciosidade! Jamais sofri derrota tão arrasadora! - queixou-se e, fraquejado de forças, deixou-se ficar esparramada pelo chão, e fazia uma figura miserável ali em posição tão desleixada para um rei.
Brian e seus irmãos atravessaram a porta do palácio matando todos que encontravam, alcançaram as muralhas e rumaram para a orla. A lança dava rabanadas investindo contra pedras, árvores e tudo que ladeasse o caminho: Calma, acalme-se, Furiosa, acalme-se, dizia Brian tentando controlar a sanha mortífera da terrível arma. Os irmãos vinham atrás à uma distância segura: o seu nome é "Furiosa", diziam, e davam pinotes. Calem-se! - pediu Brian; ela pode voar de minhas mãos e matá-los!
Chegaram enfim ao Varredor das Ondas. O barco, ao ver a arma assassina retorcendo-se em torno do próprio eixo, remexeu-se todo em aflição. Brian antes de entrar na embarcação, mergulhou a lança na água e esfriou sua fúria. Manteve-a sempre sob a água. O barco aquietou-se. Embarcaram e Brian, o guia de todos, pronunciou: Ó tu, barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que navegue e nos leve ao reino de Sigar e ao rei Dobar. O barco fez seu rumo e disparou suave pelo mar de azul cobalto.
Iam agora em demanda do precioso carro e cavalos do rei de Sigar. Seguiram firmes e orgulhosos de sua inteligência e façanha, mas guardando sua língua de pronunciar palavras vãs. A um sinal de palavras insensatas dos irmãos, Brian dizia: Calem-se! E para Brian era doloroso vigiar e ser o condutor de tudo na demanda. Mas ele sabia que seus irmãos eram só grandes guerreiros, não tinham a arte do pensamento correto. E esse é o traço mais perigoso e devastador nos deuses e nos homens, aprendeu Brian desde que matara Kian com injusto e traiçoeiro ato, tanto quanto insensato, e agora carregava o fardo das consequências e pagava suas penas.
Ainda sim, conquistaria para si o resgate de sua pessoa, é o que doravante almejava nessa demanda, e nada mais desejava, já que a morte que dera a Kian regia agora a sua vida, e toda ela transformara-se num circulo que orbitava unicamente em torno desse ato, acabado e finalizado, impossível de remediar.
Brian agora ocupava seus pensamentos em achar a forma adequada para se apresentar na corte de Sigar: Creio, irmãos, que é mais conveniente nos apresentar ao rei como soldados de Erin, disse.
Preferia que dessa vez chegássemos em nossa forma de guerreiros terríveis, hostis e valentes, que vieram buscar os cavalos e o carro de Sigar e que o levarão ou pela amizade ou pela força.
Não faremos isso absolutamente! - reprovou Brian. Ouçam minha proposta. Nos apresentaremos como cavaleiros de Erin que ali vieram dispostos a proteger e guardar quem melhor nos recompense. Penso que ganharemos a preferência do rei. Conquistaremos a sua confiança e isso nos facilitará o acesso aos bens que viemos buscar. Nosso sucesso nessa demanda será uma consequência natural.
Iucharba e Iuchar concordaram. Afinal, o irmão já tinha provado três vezes que seus planos eram bem-sucedidos, e muito melhor era seguir-lhe o parecer do que arriscar a morte numa aventura perigosa.
Chegaram à orla e desembarcaram, agora portadores dos bens mágicos que já tinham conquistado. Brian, com toda cautela, antes de rumar para o palácio, deixou os irmãos no barco e seguiu para a cidade a fim de encontrar um saco de couro bem vedado. Era sua intenção guardar a lança Furiosa num saco cheio de água, tanto tempo quando fosse possível, até que se instalassem.
Ia pelo caminho perquirindo sobre o objeto que procurava aos raros passantes com quem cruzava: Nesta terra não existe o objeto que procura, diziam. Viu que era inútil prosseguir a busca e não havia o que fazer senão aquietar-se e pensar em soluções. Sentou-se no caminho para pensar num modo de apaziguar a Furiosa: É uma situação difícil, dizia em seus pensamentos. De que meio posso me servir para levar comigo a Furiosa? Segundo pensa Pezar, somente a água pode apaziguar a sua fúria. Mas será somente isso? Estou certo de que há outro meio. De que modo descobrir senão testando? Trago comigo objetos mágicos que podem apaziguá-la: ou o vinho obtido com a pele do porco ou as maçãs poderão curar-lhe a fúria. Não sei que efeito fará a maçã. É muito arriscado usa-la. Conforme conclusão natural do poder de suas virtudes, a cura que as maçãs propiciam é permanente, e não me convém esse efeito para uma lança como Furiosa. Já o vinho deixa de ser vinho em nove dias. Isso me faz pensar que, se tem a virtude de uma cura permanente em seres vivos, um objeto de metal pode reagir de outro modo. Seja como for, é um risco que tenho de enfrentar. Ou devo entrar no palácio com ela em punho exigindo a entrega dos cavalos e do carro? Não, o rei preferirá a morte a me entregar esse bem precioso. Melhor é seguir o primeiro plano.
Com essas conclusões em mente, voltou para o barco decidido a fazer uso da pele. Tomou o objeto mágico, colheu água de um regato que corria nas proximidades e a transformou em vinho com os poderes mágicos da pele. Tirou Furiosa da água. A arma retorceu-se golpeando à direita e à esquerda: Calma, calma, Furiosa, não é hora de matar! - disse, e banhava a ponta da lança no vinho enquanto, a modo de conselho, recitava essa prédica. De fato, a arma foi arrefecendo, arrefecendo, até que se quedou adormecido o seu metal feroz.
Contente e audaz, sentindo todas as suas forças trabalhando em seu favor, convocou os irmãos para iniciarem sua jornada rumo à quarta aventura da demanda. Em breve alcançaram as portas do palácio e pediram que fossem anunciados ao rei Dobar como soldados de Erin que vinham oferecer sua valentia e bravura ao seu reino.
O rei estava ausente do palácio. Era seu costume presidir, em dias favoráveis, a sua assembléia de cortesãos em uma extensa clareira perto de seu palácio. Para lá seguiram os irmãos. Os três surgiram na orla da clareira e produziram impressão. Notados de imediato, abriram caminho para oferecer-lhes passagem e os nobres da corte de Dobar admiraram seu porte de guerreiros potentes, de andar firme, corajoso e valente.
Diante do rei, curvaram-se em reverência: Senhor, somos cavaleiros de Erin e viemos a esta corte oferecer nossa coragem e valentia ao vosso reino.
O rei admirou o oferecimento: Senhores, desejam fazer parte de minha corte como guardas defensores de meu reino?
Sim, desejavam. Tinham ouvido falar do rei Dobar e admiravam sua fama e seus tesouros preciosos. Serviriam com lealdade o rei em tudo, e para isso dariam a vida. O rei lhes ofereceu lugar de honra e confiança, fazendo-os seus guardas pessoais. A recompensa de seus préstimos poderia ser pedida na ocasião que lhes aprouvesse e seria equivalente à magnitude dos serviços prestados. E assim concordes, selaram compromisso.
Ficaram no palácio, com aposento reservado à guarda pessoal do rei. Pelo anoitecer, recolheram-se ao seu ambiente privado. Brian manteve Furiosa consigo e dela não se separou: Segundo suponho, a lança acordara daqui há nove dias, mas não tenho certeza de que será exatamente assim. Preciso vigiar. A arma mais potente e a coragem mais audaciosa não valem nada diante da imprudência, disse consigo.
E foi auspiciosa sua conduta. A lança removeu-se na alta noite, retorceu-se, e num salto desvencilhou-se de sua mão indo golpear a parede em frente. Brian apressou-se em agarra-la e dominá-la. Tomou a pele de porco, despejou do vaso a água deixada para a noite e a manhã, e passou a pele de carneiro por ela. Banhou a ponta da Furiosa no vinho. Ela se aquietou novamente adormecida: Esse acontecimento é extraordinário, disse consigo. Segundo penso, o seu ferro reage ao vinho mágico por nove horas. Amanha bem cedo preciso banhá-la novamente. E foi o que fez logo que saiu da cama.
O dia começava, era preciso investigar onde estavam o carro e os cavalos, agarra-los e sair dali quanto antes. Como guarda pessoal do rei, os três tinham de acompanhá-lo aonde fosse, e Brian previu que essa condição logo lhes propiciaria estar de frente com seu destino. Mas isso não sucedeu, e, passado um mês, Brian foi à presença do rei a fim de cobrar a recompensa dos serviços prestados:
Senhor, há já um mês estamos aqui, e venho pedir-lhe a recompensa de nossos serviços, disse Brian. O rei perguntou-lhe que recompensa desejava pedir, dissesse e ele julgaria a justiça do prêmio.
Senhor, começou Brian, ouvimos dizer que vossa majestade possui um tesouro de valor inestimável. Refiro-me ao carro e cavalos, que, segundo dizem, andam tanto na terra como no mar. Como recompensa deste mês de serviços, desejo que me mostre esse tesouro atuando em sua maravilhosa corrida por mar e terra. O rei replicou dizendo: Julgo insignificante a recompensa que me pede. Meus cavalos não saem do estábulo sem que haja razão para isso. Mas, pela estima e valor que seus serviços merecem, mandarei trazê-los amanhã cedo e percorrerei com eles uma porção em terra e no mar, conforme seu desejo.
Foi oportuna a disposição do rei. Furiosa não veria banho de vinho na manha seguinte.
E tudo sucedeu conforme as expectativas. Logo cedo, os cava-los vieram atrelados ao carro. O rei, que não permitia a ninguém subir no carro e guiar a marcha, e que os conduziu. Voaram como o vento pelo mar e pela terra, feito pássaros que voam soltos no vazio do céu, desvencilhados de todo obstáculo e força material. Era uma maravilha!
De volta ao palácio, o rei entregou ao palafreneiro o seu tesouro para o conduzir de volta aos estábulos. Brian, preparado para o momento, assaltou o palafreneiro e tomou dele o carro e os cavalos, os irmãos o seguiram e os três subiram para o carro. Os guardas empunharam as espadas para lutar. O primeiro grupo que tentou se aproximar caiu por terra, todos mortos pela lança Furiosa, e menos de minuto depois já os três irmãos voavam rumo à orla.
O rei viu que não adiantava persegui-los. A velocidade em que iam não era páreo para cavalos comuns. Terrivelmente arrasado com a perda de um bem tão precioso, rumou para o seu palácio. Os irmãos a essa altura, já estavam na orla e decidiram quem ia conduzir o carro e os cavalos conquistados: Não convém que nos apartemos. Levaremos os cavalos e o carro no barco conosco, disse. Não vê que não cabe? - interpôs Iucharba. Irmão, esqueceu que o barco pode levar quantos nele entrar? - voltou Brian. Vamos, disse, e embarcou os novos passageiros. E, à medida que iam um a um entrando, o barco se alargava para os receber: ó tu, barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que navegue e nos leve para o reino de Asal, rei dos Pilares Dourados.
Partiram no barco maravilhoso pelo vasto mar, rumo ao reino de Asal. Levavam consigo as maçãs douradas, que curam os homens de todo mal e doença; a pele de porco, que transforma a água em vinho terapêutico; a lança Furiosa, que mata infalivelmente; os dois cavalos e o carro, que andam tanto em terra como no mar. E agora navegavam rumo à quinta demanda, iam conquistar os sete porcos mágicos, preciosidades que dão saúde eterna e imortalidade a quem deles se alimenta, eles próprios animais imortais, que, mortos num dia, no outro revivem.
Em pouco tempo se aproximaram da costa e viram que estava guardada por soldados armados. O rei Asal teve noticias dos três irmãos e de sua façanha conquistadora de tesouros preciosos; soube que corriam os mares e tinham grande destreza, eram hábeis, infalíveis, astutos e corajosos; não havia força capaz de se opor a eles e conquistavam com facilidade o que iam buscar. Possuidor de um tesouro que de modo algum queria perder, preveniu-se armando a orla toda. Ele próprio comandava seus cavaleiros, e mal viu os mágicos navegantes se aproximar, gritou: Detenham-se! Não ousem avançar mais! Sei quem são, e conheço a vossa sanha de derrotar reis para apossar-se de seus tesouros!
Brian respondeu: O rei Asal, não nos censure! Não é por nossa própria vontade que assaltamos reinos. Saiba que foi Ildana é quem determinou essa demanda como resgate pela morte de seu pai. Devemos entregar a ele os tesouros que exigiu de nós. Empenhamos nossa palavra. Como sabe, os reis não entregam seus tesouros de boa vontade. Tivemos de conquistá-Ios pela força e pela morte, e até hoje ninguém foi capaz de nos derrotar. Não ha possibilidade de acordo amigável nesse caso. Se pudéssemos obter esses bens pela paz, esteja certo de que o faríamos.
Se estão aqui é porque vieram em demanda de algum tesouro. Digam-me que tesouro pretendem obter no meu reino? - perguntou o rei.
Os sete porcos mágicos que lhe pertencem é parte de nossa demanda e viemos busca-los.
E pensam conquistá-los de que modo?
Morreremos pelas mãos de nossa tribo se não cumprirmos o que Ildana determinou. É-nos forçoso conquistar o que nos impõe essa demanda. Temos passado dificuldades tremendas e tudo temos sofrido nesses caminhos hostis que o destino nos impôs. As nossas penas não despertam sua compaixão, ó rei? Entregue-nos os sete porcos como prova de seu desprendimento, amizade e bondade, e para sempre terá nosso reconhecimento. De outro modo, lutaremos e tomaremos pela força, matando ou morrendo, que para nós não ha outra saída.
O rei considerou por instantes o assunto, e depois falou: Entrarei em conselho com meus pares para deliberar sobre a questão. Tao logo uma solução seja encontrada, voltarei para lhes dar a minha resposta, disse o rei, e reuniu-se com seus pares. Confabularam, debateram, propuseram soluções, consideraram a sangria que resultaria entrar em luta com esses conquistadores invencíveis, e decidiram, por amor da paz e da concórdia, entregar-lhes com livres mãos e desprendimento de alma o tesouro mágico.
O rei voltou à orla e disse-lhes que concedia o tesouro pacificamente. Podiam pois levá-lo, ele e ninguém do seu reino os impediria, a menos que tentassem, contra a palavra empenhada, agredi-los. Os três quedaram-se em silêncio e pensativos: nunca julgaram experimentar nessa demanda tamanho êxito e tamanha paz. Sempre tiveram de lutar fervorosamente, ou pela força, ou pela astúcia, sempre deixando rastros do sangue alheio e do próprio pelos caminhos onde passavam. A decisão do rei os livrava de uma penosa luta, e esse momento foi de grande felicidade e triunfo para eles. Agradeceram ao rei e ao seu povo com o coração saltando dentro do peito. Iuchar e Iucharba tinham o semblante comovido por essa demonstração de pacifismo.
O rei levou-os ao palácio e recebeu-os com afeto e amizade. Concedeu-lhes repouso, uma mesa com boa comida e bebida para os apaziguar e confortar. Ali puderam ter um momento de descanso em sua jornada sofrida.
No dia seguinte receberam os sete porcos e se fizeram as despedidas, e Brian, para premiar a generosidade e afeto do rei, cantou-lhe estes versos:

Os tesouros que trazemos são nossa dor;
Mas foi de vossa mão que o maior tesouro
ganhamos: o do coração livre e da amizade
que a aflição de nossa tempestade aliviou.

Nobre Asal! Os dias lhe sejam de paz,
a sua casa prospere em tão maior valor
quanto maior a alegria que nos deu.
A verdejante Erin para sempre há de honrá-lo
nos versos do poeta que em tua memória cantará!

Ó filhos de Turenn, para onde seu destino os leva agora? - perguntou o rei. Vamos para Iroda em demanda de Felinis, o cão caçador, disse Brian. Então, retornou o rei, concedam-me ir com os senhores. Minha filha é esposa do rei de Iroda, e tudo farei para evitar luta e sangue nessa conquista. Lá também já chegou a noticia dos seus feitos e toda a costa está protegida por cavaleiros armados.
Os irmãos não viram razão para recusar a benevolência do rei e até se alegraram com o oferecimento. Esse rei pacifista vinha mais uma vez aliviá-los em sua fatigante demanda. Propôs o rei que fossem todos em seu próprio navio. Assim fizeram, os três irmãos embarcaram todos os tesouros conquistados, o barco de Manannan, Varredor de Ondas, todos subiram no navio e partiram para Iroda. Chegaram felizmente e, com efeito, toda a costa estava guardada por cavaleiros armados. Asal desembarcou e rumou para o palácio em missão de paz. Apresentou ao rei, seu genro, a questão dizendo: Vêm comigo os três filhos de Turenn, guerreiros da tribo de Danna, e em seguida contou-lhe a historia dos irmãos, mencionando que entregara pacificamente o tesouro de seu reino, os sete porcos imortais, não só para evitar uma guerra desastrosa, mas por opção pacifista, de que nada nos adiantam bens, por mais valiosos que sejam, se temos de sacrificar nossos irmãos para mantê-los. O grande embaixador, por fim, revelou: E estão aqui para conquistar seu cão caçador. Aconselho entregá-lo pacificamente. São guerreiros poderosos e não há nada que possa impedi-los.
O rei de Iroda não se interessou pelo conselho de Asal, e disse:
Fez um infeliz papel quando decidiu fazer-se embaixador desses impostores. Não existem guerreiros cuja potência e proteção dos deuses seja bastante para dominar o meu cão e levá-lo, seja pela força, seja pela minha vontade.
Vejo que minhas palavras foram inúteis, disse o rei Asal. Reconsidere sua decisão. Reafirmo que é inútil recusar-lhes o cão. Como é um resgate de morte, estão empenhados, e não deixarão de levar o que vieram buscar. Saiba que esses três guerreiros trazem consigo objetos mágicos poderosos, e não há quem possa vencê-los. Derrotaram todos os reis que tentaram se opor a eles. Haverá uma sangria se não consentir que levem seu cão em paz.
O rei de Iroda persistiu em sua recusa: Mostra-se fraco e desonrado rei prestando-se a servir três guerreiros como esses, que vivem de saquear reinos, disse.
Asal não teve mais que dizer. Perturbado e derrotado, voltou aos filhos de Turenn e relatou-lhes a intolerância do rei e o fracasso da embaixada. Os irmãos empunharam as armas e avançaram para dar batalha ao rei de Iroda e aos seus guerreiros. O rugir da espadas começou a executar sua faina de violência e morte. Grandes guerreiros, a vida toda educados na arte das armas, os irmãos venciam a refrega com facilidade. Mas ali havia outros guerreiros hábeis como eles e com esses tiveram de lutar ardorosamente. No embate acirrado que se seguiu, corpos saltavam, giravam, moviam em vôo as armas de ambos os lados, barulho infernal do ferro afrontando o ferro, repipocando faíscas entre os metais e tilintando embates de morte. A luta corria igual entre os adversários. Brian, a essa altura, cercado pelos mais valentes guerreiros de Iroda, viu que ia sucumbir. A Furiosa estava em suas mãos, mas, adormecida, executava seu embate como uma lança comum. Ela estava sob efeito do vinho magico, nada havia que fazer. Brian, atingido mortalmente, caiu moribundo, as forças derrotadas. Porém, quem tem a posse de objetos mágicos não sai derrotado de nenhuma luta. Iucharba veio correndo socorrê-lo, trazia-lhe sua maçã dourada para dar cura ao irmão. Os adversários saltaram sobre ele. Grande guerreiro, ele brandiu sua espada, varreu todos a direita, a esquerda e, mantendo os adversários afastados por um momento, fez o irmão morder a maçã. Brian ergueu-se num salto e saiu rodopiando como um ente sobrenatural, são e fortificado como nunca. Pulava e saltava entre os adversários protegendo os irmãos e dançando ferozmente como quem estivesse possuído de um poder inatingível. Não bastasse isso, Furiosa começou a remexer-se acordando do sono, e passou a dar golpes pela direita e pela esquerda, fazendo tombar indefesos todos que estivessem no caminho. Os guerreiros de Iroda, ao deparar aquela arma extraordinária: uma lança, que se mexia por si mesma como coisa viva, quedaram-se aparvalhados. O rei ordenou que todos recuassem, ele e Brian iam entrar em combate singular, os dois valorosos guerreiros, eles só, corpo-a-corpo em uma luta final, decidiriam quem será o vencedor, quem será o derrotado.
Os dois guerreiros se enfrentaram. Brian não queria matar o rei. Sua intenção era conduzir a Furiosa de modo que, rechaçando o adversário e seus golpes, derrotasse-lhe todas as forças, arrancasse-lhe todo grão de energia e o fizesse fraquejar pela fadiga completa.
A luta foi demorada. O rei, hábil guerreiro, não se arrefecia. Era pesado o combate para ambos. Brian só se defendia rebatendo apenas os golpes do adversário e teve de travar um doloroso embate com a própria arma. A terrível lança, em sua sanha de matar de vez o rei, se retorcia e se esticava para atingi-lo. O rei não mostrou nenhuma surpresa diante de arma tão singular. Lutava fervorosamente, a peleja parecia não ter fim, e pela assistência toda corria um pesado véu de silêncio, imóveis todos os olhos, suspensos todos os rostos, a respiração trémula, ao mesmo tempo admirados de um combate tão espetacular, como esse nunca ninguém tinha presenciado. A força e vigor de ambos os guerreiros parecia imbatível. Não haveria vencedor, pensaram. luchar e lucharba não viam outra saída para Brian que não matar o rei. De modo algum ele o ia matar. O venceria pela fadiga. Tinha como trunfo a maçã mágica, e no momento que se sentiu fraquejar, serviu-se dela para se revigorar. Mordeu a fruta e ressurgiu possante, guerreiro sobrenatural, envolvido de uma força indestrutível. Avançou com mais vigor, e fez a espada do adversária voar. Desarmado, a rei quedou-se derrotado esperando o golpe fatal da morte. Brian, em vez disso, resgatou a arma e a devolveu a seu dono, convocando-o a retornar à luta. A essa altura porém o rei estava quase desfalecido de fadiga. Arriou os braças, mal sustendo a espada nas mãos. Brian levantou-o do chão, levou-o nos braços para Asal e disse:
Veja, Asal, em sua honra entrego esse valente rei em suas mãos. Poderia ter abreviado essa luta e tê-lo matado há muito com minha poderosa arma, mas o poupei, e ele o mereceu. É um bravo valoroso, embora lhe falte o sentimento da tolerância e da concórdia. Mas também já fui assim, e hoje já não sou. O que nisso importa é que o venci. Ganhei seu cão nessa luta. Agora temos negócio de justiça a tratar: desista ele de sua intransigência e me entregue liberalmente o seu cão caçador. Sua negativa vai decretar sua morte. Declare ele sua decisão.
Não havia o que discutir. O rei, reconhecendo que era justa a proposição de Brian, estabeleceu com ele a paz e entregou-lhe o cão. Ganharam a admiração de ambos os reis e de todo o povo. Sua fama ali ficou, para sempre conhecidos como justos e perfeitos guerreiros. Todos que iam em Iroda visitar o rei ouviam falar do espetacular acontecimento que ali se deu com a vinda de três cavaleiros, deuses portadores de forças imbatíveis. Tinham barcos, armas, cavalos e carros mágicas. Reuniam bravura e conduta honrosa no trato de suas conquistas. E foi assim que sua fama se espalhou pelo mundo, chegou ate nós, e esta é a sua história, que ainda não acabou e vai andar por algumas linhas a mais até encontrar seu fim.
E já os vemos adiante no barco mágico de novo navegando suavemente nas águas inquietas do mar. Dormem como crianças indefesas, vão em descanso de cura da luta cruel os filhos de Turenn, esse, que triste e afundado na dor espera em Erin o retorno das suas criaturas e o fim da demanda, feliz ou infeliz, qual seja ele bem sabe no seu coração, e mais o que espera é que seu saber não seja saber mas ilusão de sua inquietude, que também os deuses se iludem.
Nessa altura, em seu solo, aconteceu aos três irmãos esquecer as duas jornadas que ainda lhes competiam na demanda: o espeto de assar e os três gritos na Colina de Midkena. Lugh, por artifícios de magia, soube que os filhos de Turenn já estavam na posse dos objetos mágicos que lhe importavam. Era quanto lhe bastava para ir em batalha contra os Fomore, em Moytura. Tinha pressa em ter em seu poder esses objetos valiosos, e ele próprio, com sua ciência e conhecimento, lançou um encantamento que riscou da memória dos três irmãos as duas últimas partes da tarefa. E sucedeu que, acordando de seu sono de alivio e cura, surpreenderam-se com a constatação de que a demanda estava cumprida, e Brian falou entusiasmado: Irmãos, estamos livres! Cumprimos felizmente a demanda e fomos vitoriosos. Resgatamos nosso erro e já nos redimimos perante Lugh e nosso povo. E hora de voltar e entregar os objetos mágicos que conquistamos para ele: ó tu, barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que navegue e nos leve de volta a Brug-na-Boyne.
O barco mudou seu curso e tomou o caminho para Brug-na-Boyne, onde chegaram os dois irmãos. Lugh estava em uma assembléia com o rei, reunida na planície de Tara. Já os filhos de Turenn desembarcavam, ele já sabia que eles Iá estavam com os objetos mágicos de sua estimação. Sussurrou ao ouvido do rei: Os filhos de Turenn estão chegando a Erin. Receba os objetos exigidos, que não me convém por ora encontrar-me com eles, e deixou a Assembléia furtivamente, rumou para Caher-Crofim, a grande Fortaleza de Tara, e ali, depois de entrar, fechou os portões, envergou a armadura de Manannan Mac Lir e a capa encantada da filha de Flidas.
Entrementes, os três irmãos se aproximavam do palácio do rei Nuada. A notícia de seu retorno se espalhou e uma grande multidão veio recebe-los. Vinham no carro conduzido pelos dois cavalos, carro e cavalos de uma beleza esplêndida, tesouros que andam tanto em terra quanto no mar. Traziam consigo as demais conquistas da demanda: as maçãs douradas, que curam os homens de todo mal e doença; a pele de porco, que transforma a água em vinho terapêutico; a lança Furiosa, que mata infalivelmente; os sete porcos imortais, preciosidades que dão saúde eterna e imortalidade a quem deles se alimenta; o cão caçador, brilhante como sol, que paralisa só com a vista toda fera ou animal selvagem. E todos puderam admirar essas grandes maravilhas.
O entusiasmo arrebatou o povo: os heróis foram aclamados com todas as honras e felicitações. Era grande a admiração diante dos tesouros que foram capazes de conquistar.
O rei os recebeu com cortesia, apreciou aquelas maravilhas e perguntou se tinham conquistado todos os tesouros pedidos por Lugh. Brian respondeu: Conquistamos todos os objetos valiosos exigidos. Grandes sacrifícios, sofrimentos, perigos e dificuldades sem conta sofremos nesses caminhos. Queremos a presença de Lugh para entregar-lhe o resgate que nos pediu.
Nuada, o rei, disse: Lugh me encarregou de recebê-los em seu nome. Entreguem os tesouros, mandarei mensageiros em seu encalço e em breve ele virá ter com os senhores.
Foram os mensageiros dar a Lugh a noticia de que os filhos de Turenn estavam de regresso. O rei estava na posse dos objetos da demanda e pedia seu comparecimento na assembléia real para dar por cumprido o resgate e libertar Brian, luchar e Iucharba.
Lugh escutou a mensagem, e partiu. Ali chegando, recebeu das mãos do rei os objetos conquistados pelos filhos de Turenn, examinou tudo e disse: Com efeito, os filhos de Turenn conquistaram tesouros, os mais apreciáveis, que lhes competia nesse agravo. Porem, faltam aqui a duas últimas partes, e como sabem, O rei e nobres aqui presentes, um resgate deve ser cumprido em todas as suas partes, ainda mínimas que sejam. Os senhores, povo da tribo de Danna, testemunharam o compromisso do cumprimento integral do resgate. Vejo aqui as três maçãs, a pele de porco, a lança Furiosa, o carro e os cavalos, os sete porcos e o cão caçador. Mas onde estão o espeto de assar? Também não ouvi os três gritos na Colina de Midkena!
Era grande o atordoamento dos três irmãos. Nesse instante caiu-lhes de volta na memoria a parte da demanda que faltava conquistar: Ah, que infelizes eram! Julgaram-se livres, e a grande fortuna que pensaram ter conquistado para si mesmos não passava de um erro de julgamento causado pela traição de sua memória. Era-lhes incompreensível o seu esquecimento. Sem ter o que dizer, saíram em silêncio da assembléia e foram para a casa do pai. Contaram a Turenn e a sua irmã, Ethnea, a sua infelicidade. Teriam de partir novamente em demanda do que ainda faltava para conquistar sua liberdade.
Turenn, os olhos envoltos em sombras e tristeza, disse: Ah, meus filhos, esse esquecimento foi efeito de magia do poderoso Ildana. Confirma-se o que eu previa, e não mencionou o seu triste pressentimento, que também os três irmãos já o tinham na pesada atmosfera de desalento e dor que não os deixava desde a entrevista com Lugh. Tudo encontrará seu fim, continuou Turenn, conforme o fio que esses eventos tecem, e não nos resta mais que envergar nossas forças para suportar o que ainda e mister sofrer.
Ethnea chorou a sorte dos irmãos, e para os aliviar acompanhou-os para sua nova partida rumo a suas aventuras, que pareciam nunca chegar ao fim. Ali se despediu deles e retornou para o pai, em quem a dor esmagava todo o ânimo.
Rumaram para a ilha de Fincara, mas não a encontraram. Por três meses vagaram pelo mar aportando em várias ilhas e procurando por quem lhes pudesse indicar a localização do seu destino. Não encontraram ninguém que soubesse da existência de Fincara.
Ah, irmãos, nosso sofrimento não tem fim, disse Brian. É nosso destino navegar sem rumo pelo mar, em desatino, procurando a trilha de uma terra que não sabemos onde está. E já não temos o barco de Manannan, Varredor das Ondas, que aplaina toda a turbulência das águas. Agora, as ondas nos fristigam o corpo de cansaço e nossas forças ficam à mercê da violência desse caminho instável de aguas por onde temos de percorrer.
Certo dia resolveram deixar o alto mar e voltar para a costa de Erin. Contornaram a orla, entraram no mar de dentro e navegaram em direção ao mar de Moyle. Aproximaram-se da costa de Alba, e ali desembarcaram adentrando a terra, onde encontraram um ancião, de longas barbas e de feições veneráveis. Perguntaram se ele sabia onde ficava a ilha de Fincara: Os senhores buscam uma ilha submersa nas profundezas do mar. A ilha de Fincara uma vez já esteve na superfície, ficava entre Erin e Alba, mas há muito tempo, por efeito de encantamento, foi engolida pelas águas.
Retornaram à embarcação. Brian, destemido, vestiu seu traje de mergulho e colocou o seu elmo de cristal. Com esses trajes apropriados para entrar no fundo das águas, ele submergiu sozinho, desaparecendo da vista dos irmãos, que ficaram à sua espera no barco.
Nadou no fundo do mar por longo tempo até encontrar a ilha de Fincara. Tinha muitas habitações, entre elas, uma se destacava grandiosa e imponente. Para lá se dirigiu e, encontrando as portas abertas, entrou. Viu tão esplendorosas mulheres, que ficou maravilhado diante de tão agradável visão. Executavam todo tipo de tarefas artesanais: bordados com fios de ouro, capas de fina seda e preciosos vestidos. No centro, sobre uma mesa, viu um espeto brilhante.
As mulheres o notaram e o acompanharam com o olhar enquanto ele, em silêncio, caminhou para a mesa, arrebatou o espeto e rumou para a saída da mesma forma como entrou. Nenhuma delas disse palavra, seus olhos pararam nele admirando sua beleza masculina e sua ousadia. Antes que pudesse alcançar a porta, elas explodiram numa sonora gargalhada, e uma delas, a que presidia o trabalho de todas, disse: O senhor é muito ousado, ó filho de Turenn. Sabe porventura que somos em número de 150 mulheres e que a menos poderosa é capaz de lhe impedir de levar esse espeto, ainda que seus dois irmãos estivessem aqui para o ajudar?
Contudo, entrou aqui sabendo o risco que corria. É valente e coragem não lhe falta, meu bravo guerreiro. Tem o nosso apreço, e por sua ousadia, seu valor, elegância e beleza de porte, lhe oferecemos como prêmio esse espeto que pretende furtivamente nos tirar.
Brian voltou-se, e lhes fez uma reverência, ao que a outra acrescentou: Temos muitos espetos como esse. Vá em paz. Ele foi e nadou para a superfície levando o prêmio conquistado. luchar e Iucharba esperavam pelo irmão, e a longa espera já os fazia acreditar que o irmão tinha sucumbido na busca. Estavam já para partir quando viram brilhar o elmo de cristal e surgir Brian envergando o espeto de assar, a penúltima tarefa da demanda. Os irmãos o felicitaram e todos, aliviados, trataram de rumar em busca de cumprir a última parte da demanda. Navegaram até alcançar a orla e costear o soberbo monte onde Midkena os viu chegar e antes que desembarcassem ele gritou: Filhos de Turenn, aqui encerra-se sua jornada, há muito os espero. Lutem! Não sairão destas margens sem pagar pela morte que deram a Kian, a quem ensinei minha arte e amei com a maior das ternuras, disse e avançou preparado para combater.
Brian permaneceu calmo. Nem o olhar de fúria de Midkena nem a ameaça de suas palavras o fizeram temer ou recuar. Avançou para a luta. Os dois guerreiros se atracaram. A fúria do combate soou perturbadora no ar: as armas tilintavam, os combatentes lançavam urros entre si, a fúria dançava entre saltos e retorcimento de ambos na luta.
Os três filhos de Midkena, ao ouvir o rumor fervoroso da batalha, correram para ajudar o pai. Ali chegaram tarde. O pai tombava transpassado pela espada de Brian. Avançaram ferozes contra ele. Iuchar e lucharba acorreram em socorro do irmão, e começou uma severa luta entre os três filhos de Midkena e os três filhos de Turenn. O combate que ali se travava foi espantoso. Assolavam-se os dois grupos entre apupos de guerra e golpes violentos, cada um assomando com terrível força contra o adversário. As espadas furiosas debatiam-se entre si infatigáveis, soaram os metais ecoando o tilintar continuo de forças que se chocam com violência. Seria um espetáculo admirável de se ver, não fosse a violência da morte que os espreitava, na iminência de fazer tombar, quais entre aqueles grupos de irmãos em luta?
Já Os três filhos de Turenn estavam cobertos de feridas, o sangue escorria e as espadas de ambos os lados continuavam golpeando ferozes entre si nos embates dos corpos em luta. A cada novo golpe recebido, a espada voltava erguida com inacreditável força pelos braços do ferido, e ia lançar-se contra o seu agressor. Os três filhos de Midkena, com um salto espetacular, fugiam ao golpe com incrível destreza. Eram com efeito grandes guerreiros, que receberam de seu pai, mestre na arte das armas, os segredos da invencibilidade. A luta seguia e se fazia interminável, imprevisível o desfecho, imponderável sem resultado. Ambos os lados se igualavam na arte das armas, e embora feridos, erguiam-se infatigáveis na luta.
Os três filhos de Turenn caíram sobre os joelhos lado a lado, os adversários avançaram para o golpe fatal. Imprevistamente, num salto estudado eles se levantaram simultâneos, a espada no pulso firme cada um transpassou os adversários. Os filhos de Midkena tombaram, esvaída toda a força da vida, o véu da morte os veio cobrir, silenciando enfim o rumor de sua fúria.
Terminada a luta, os filhos de Turenn desabaram de cansaço e dor. Começaram a sentir vivamente as feridas. Eram tantas e tão profundas, que latejavam e todo o corpo padecia um sofrimento pungente. Tombados por terra ali se deixaram ficar, incapazes de movimento e de palavras, mudos, as pálpebras derreadas, como se em breve a morte os viesse tomar.
Brian levantou as pálpebras e perguntou aos dois irmãos se ainda viviam: estamos vivos, irmãos, mas vivos que estão atravessando os umbrais da morte.
Queridos irmãos, retomou Brian, levantemos e, enquanto há vida em nosso corpo, venham comigo cumprir a última parte de nossa demanda. Sinto a morte próxima e ainda não chegamos ao fecho de nosso compromisso, os três gritos no topo do monte de Midkena.
Os irmãos não se moveram. Estavam muito fracos para subir o morro e ainda dar três gritos. Brian, reunindo todas as forças que ainda lhe mantinham a vida, carregou os dois irmãos ao topo do monte, deixando atrás um traço de sangue, e ali os três, convocando suas forças, deram os três gritos que lhes foram exigidos.
Brian conduziu seus irmãos para o barco e rumaram de volta para casa. Navegavam pelo mar e em certa altura Brian voltou os olhos para Oeste e falou: Ah, irmãos, vejo Bem-Edar que se eleva das águas e posso ver também Dun Turenn ao norte. Iuchar, deitado perto de Iucharba, disse: Desejaria entrever, mesmo que apenas num relance, Bem-Edar. Essa visão poderia nos trazer de volta as forças e nos devolver a vida que nos foge. Irmão, sei que nos ama. Vem e ampare nossa cabeça em seu peito para que também vejamos Erin novamente. Deixa-nos olhar nossa terra, nosso lar.
Brian tomou a cabeça de cada um de seus irmãos, amparou-as sobre o peito e eles contemplaram as montanhas rochosas, as encostas verdejantes de Bem-Edar, e iam com os olhos presos na paisagem de sua terra enquanto o navio para Ia se dirigia.
Chegaram finalmente e desembarcaram ao norte de Bem-Edar, e dali seguiram para Dun Turenn. À entrada, Brian gritou: Querido pai, estamos de volta, vem receber seus filhos!
Turenn acorreu ao encontro deles. Viu-os cobertos de feridas, fracos, retornados à sua casa para morrer: Amado pai, vai depressa, procura Lugh, entrega-lhe o espeto de assar, e diz-lhe que a última parte da demanda também foi cumprida, e que aqui estamos à morte, feridos gravemente na batalha que tivemos de enfrentar para cumprir fielmente a sua exigência. Pagamos o resgate pela morte de Kian, e tudo foi cumprido. Traga-nos as maçãs do Jardim das Hespérides para curar-nos e nos devolver a saúde.
Turenn apressou-se, cavalgou em disparada até chegar a Tara. Entregou o espeto de assar a Lugh, e disse: Meus filhos cumpriram toda a demanda, também os gritos no alto do monte de Midkena. Estão feridos de morte. Peço-lhe que me entregue as maçãs douradas para curá-los.
Não posso lhes dar essa cura, disse Lugh. Praticaram um ato mau matando meu pai impiedosamente. O sangue que derramaram é o fio condutor que determinou-lhes o destino. Está tudo cumprido. E inútil levar as maçãs. Sua magia só atua enquanto em sintonia com o fio que trança todos os eventos de um ato. A jornada de sofrimentos exacerbados que enfrentaram trançou o fio, e não há volta. A morte é que pode tudo apaziguar e redimir. Esse é o fecho natural.
Turenn voltou para os filhos, com o coração despedaçado, a toda pressa para estar com eles na hora da morte.
Brian viu o pai chegar de mãos vazias, todo em tristeza, e adivinhou tudo. Voltou para seus irmãos, juntou-se a eles e a vida deixou os três no mesmo momento.
Turenn e a filha Ethnea deram as mãos e cantaram um lamento:

De mim a vida se esvai e a hora é de agonia
Nenhum consolo haverá que me alivie o mal
Ah, quando soube que o alento me fugiria
E a dor me arrebatasse no seu véu fatal?

Não chegou a terminar, caíram mortos sobre os corpos dos heróis e nesse momento rompeu-se o fio de sua linhagem. Terrível a sorte desses que se despediram da vida com dor tão extrema. O que foram antes de sua jornada apagou-se no sopro do vento. De sua vida só ficou esse período, curto de extensão, maior que sua vida inteira. Foi por essa travessia épica no seu oceano de vida na nau mágica de Manannan que sua história atravessou os tempos e sua memória imprimiu-se permanente.

A chegada da tribo de Danna

terça-feira, 18 de setembro de 2012

A tribo de Danna aportou na Irlanda e ninguém os viu chegar. Vieram encobertos por uma nuvem mágica densa. Nesse tempo os Firbolg habitavam a ilha e viviam oprimidos pelos Fomore, o povo das trevas, que, travadas diversas lutas, lhes exigiram por fim tributos extorsivos. Agora um espesso nevoeiro cobria toda a Irlanda em uma única camada de nuvem. Os Firbolg sentiram uma terrível ameaça. Era a terra que se dissolvia em abismo a seus pés, foi o que pensaram. Diante de tão incompreensível poder, buscaram refúgio e por três dias e três noites se recolheram oprimidos pela grande nuvem que se abateu sobre o país.
Seus magos por fim descobriram que o fenômeno era efeito de encantamento, e a custo fizeram uma contra-magia dissolver o nevoeiro. Saíram de seus abrigos e perceberam que um novo povo tinha aportado no país. Já tinham construído uma fortificação em Moyrein. Era a tribo de Danna que chegava trazendo poderosas forças e tesouros de magia desconhecidos. Tinha sido Morrígu, auxiliada por Badb e Macha, deuses guerreiros dessa tribo, que tinha evocado o nevoeiro usando formulas druídicas.
Os Firbolg enviaram um de seus guerreiros, Sreng, para saber quem eram os misteriosos invasores. O povo de Danna enviou, por seu turno, Brian para os representar. Os dois embaixadores examinaram as armas de cada um com grande interesse. As lanças dos Danna tinham pontas agudas e eram leves. As dos Firbolg eram pesadas e rombudas. Brian propôs que os dois povos dividissem a Irlanda pacificamente, juntos derrotassem os Fomore e defendessem o país de futuros invasores. Os Firbolg não se impressionaram com a superioridade dos Danna, eram para eles novos intrusos que chegavam para também os oprimir. A irmandade que ofereciam era dissimulação e astúcia para os dominar. Foi o que pensaram, e decidiram recusar a proposta: Se concedemos parte do país, logo exigirão o país todo, e nos exigirão tributos insuportáveis, disse Eochai, seu rei. A batalha foi travada no Campo de Moytura, no sul de Mayo, perto do lugar hoje chamado Cong. Liderava os Firbolg seu rei, Eochai Mac Erc; o rei Nuada comandava os Danna.
O povo de Danna ergueu-se no campo de batalha em fileiras flamejantes, levando escudos sólidos, brilhantes e de bordas vermelhas. Nas fileiras dos Firbolg faiscavam espadas, lanças e lançadores. A peleja começou. Vinte e sete Danna enfrentaram e derrotaram o mesmo número de Firbolg. Seguiu-se nova embaixada para deliberar sobre o modo de continuar a batalha. Nuada obteve de Eochai a garantia de que os dois exércitos lutariam com números iguais de combatentes. A luta recomeçou com uma série seguida de combates singulares. No fim do dia retomavam cada um para seu campo, ao descansavam e se curavam das feridas de guerra com banhos de ervas medicinais. A luta durou quatro dias, com terríveis baixas para ambos os lados.
Um herói dos Firbolgs, Sreng, partiu em dois o escudo de Nuada, o rei dos deuses, e com um terrível golpe decepou uma de suas mãos. Eochai, rei dos Firbolg, menos afortunado, perdeu a vida. Os Danna obtiveram vitória, protegidos por sua arte mágica de cura. Por fim, os Firbolg, derrotados e morto seu rei, ficaram reduzidos a apenas trezentos homens. Sabendo que para eles não havia salvação, pediram combate até a morte de todos os combatentes de um dos lados. Mas, em vez de consentir, os Danna ofereceram a eles a quinta parte da Irlanda: que tomassem para si uma província de sua escolha. Concordaram e escolheram Connacht, que se tomou seu território.
Como resultado da perda de uma de suas mãos, Nuada ganhou o codinome de Argetlam, o Mão-de-Prata. Diancecht, o medico da tribo Danna, fez para ele uma mão artificial de prata, tão habilmente que se ligou em todas as juntas, e tão forte quanto uma real. Contudo, por mais excelente que fosse o trabalho de Diancecht, era uma mão artificial, e, de acordo com os costumes celtas, nenhum homem mutilado podia ocupar o trono. Nuada foi deposto, e a tribo de Danna reuniu-se em assembléia para escolher um novo rei.
Escolheram Bress, filho de En e Elathan, para reinar em seu lugar. Esse Bress, agora rei, embora forte e belo, trazia a sua parcela de alma escura, herança de sua raça, os Fomore. Não apenas permitiu que os inimigos de Erin, os Fomore, oprimissem seu povo com tributos insuportáveis; ele próprio tratou de taxar extorsivamente seus súditos. Era tão mesquinho, que não dava hospitalidade nem a chefes nem a nobres nem a músicos nem a poetas, tampouco tinha a alma generosa. Reunia em si os piores vícios num príncipe, intoleráveis entre o povo da tribo Danna.
Não bastassem as taxas extorsivas, obteve com um estratagema hábil todo o leite produzido entre os Danna. Inicialmente, exigiu apenas a produção de vacas castanhas e sem pêlo, e o povo de Danna consentiu de boa—vontade. Mas Bress passou todo o gado de Erin entre duas piras de fogo, de maneira que perderam o pêlo e ficaram queimadas. Foi desse modo fraudulento que obteve todo o leite produzido e ficou com o monopólio de toda a fonte de alimento da Irlanda. Para obter sobrevivência, todos os deuses, mesmo os maiores, foram forçados a trabalhar para ele. Ogma, o seu herói, tornou-se coletor de lenha para o fogo. Dagda, o construtor de fortalezas e castelos.
Bress provocou a ira dos deuses. Era inadmissível um rei que não fosse liberal com seus súditos. Na corte de Bress ninguém jamais teve entre as mãos uma faca untada de gordura, ou sentiu o aroma da cerveja. Os poetas, músicos e ilusionistas já não davam divertimento ao povo, pois Bress não compensava sua arte. Por último ele cortou toda a subsistência dos deuses. Tão escassa era a comida, que começaram a ficar fracos de fome. Ogma só tinha forças para apanhar um terço da lenha necessária ao fogo, e passaram todos a sofrer tanto com o frio quanto com a fome.
A crise se agravava. Foi então que dois médicos, Miach e Airmid, filho e filha de Diancecht, o deus da medicina, vieram ao castelo onde Nuada, o antigo rei, vivia. Examinaram seu pulso e viram que a juntura da mão de prata tinha causado uma grave infecção. Miach quis saber onde estava a mão mutilada. Tinha sido enterrada. Ele exumou a mão e a colocou no coto, pronunciou fórmulas mágicas: tendão com tendão, nervo com nervo se juntem! Em três dias a mão tinha se recomposto e se fixado no braço, e desse modo Nuada estava novamente perfeito.
Diancecht, pai de Miach, ficou furioso quando soube do feito do filho: Então, será possível que ele exceda a mim em talentos medicinais? Não, e preciso extirpar isso. Ninguém além de mim tem maior ciência em medicina e arte mágica de curar. Foi ao encalço do filho e abriu-lhe a cabeça com a espada. Miach facilmente se curou. Diancecht o feriu novamente. Novamente Miach se curou. Pela terceira vez Diancecht o feriu. Dessa vez o golpe tinha rompido a membrana que envolve o cérebro. Novamente Miach foi capaz de curar-se. E pela quarta vez, Diancecht veio ate ele e, cego de ciúmes e despeito, cortou-lhe a cabeça, partindo seu cérebro em dois. Miach não pôde fazer nada, era impossível a cura. Satisfeito, Diancecht tratou de sepultá—lo. Sobre seu túmulo nasceram 365 ervas, cada uma com propriedades curativas para as doenças de cada um dos 365 nervos que formam o corpo. Airmid, a irmã de Miach, colheu todas cuidadosamente e as ordenou segundo a propriedade de cada uma. Mas o ciúme e o despeito do pai novamente impediram que esse bem prosperasse. Embaralhou e confundiu todas entre si. A jovem irmã não pôde mais separá-las. Não fosse esse ato promovido por um instinto sombrio, dizem os poetas da Irlanda, os homens teriam o remédio para todas as doenças e seriam imortais. Diancecht é o pai da discórdia e o destruidor das esperanças do homem. Nunca mais houve outra oportunidade como essa. Miach foi o único ser dotado de tão excelente conhecimento e magia. Ninguém mais houve que excedesse seus divinos dons.
Lamentável o fim a que seu dom o levou. Embora morto, os efeitos benéficos de sua arte continuaram a exercer domínio entre os deuses. Os poetas da Irlanda — e ouçamos os poetas, entes que sensivelmente captam os mistérios do mundo — disseram a respeito da morte de Miach: Esse deus luminoso que morre, ainda que a sorte o tenha apartado dos seus, permanece atuando entre aqueles a quem amou. Assim acontece aos luminosos: parecem destinados a trazer toda ventura a seus pares e nenhuma para si mesmo.
Tem razão os poetas. O luminoso Miach tinha curado a mutilação de Nuada, e o fizera novamente homem sem defeito. Esse acontecimento oportuno foi uma bênção para os deuses, filhos de Danna, que nessa ocasião deliberavam sobre a necessidade imediata de depor Bress e acabar com sua tirania. Um evento recente tinha aviltado a todos. A tribo de Danna amava seus poetas e lhes dedicava grande honra. Toda consideração lhes era concedida e eles partilhavam da mesa dos reis. Aconteceu que o injusto e indelicado Bress tinha feito um agravo ao poeta Cairpré, filho de Ogma, deus da literatura, que insuflou na mente do filho o divino dom da poesia.
O sagrado poeta tinha ido visitar Bress. Em vez de ser tratado com as honras que lhe cabiam, o indelicado rei o instalou em um aposento escuro e pequeno, um cubículo, desprovido de toda benevolência e amizade. Fogo não havia, cama não havia, mobiliário não havia. Um cubículo nu, desconfortável, com uma miserável mesa sobre a qual havia pedaços de bolo velho, pão seco, nenhuma água. Cairpré passou frio, fome e sede a noite toda. Na manha seguinte levantou cedo e, sem dizer uma palavra ao rei, deixou em silêncio o palácio. Era costume entre os poetas criar um panegírico em honra do rei por sua hospitalidade. Cairpré, porém compôs uns versos satíricos mágicos. A primeira sátira composta na Irlanda, que dizia:
Nenhuma carne nos pratos, nenhum leite nas taças;
nenhum abraço aos visitantes;
nenhum prêmio aos menestréis:
Eis o louvor que Bress oferece!
E foi esse poeta mágico que completou a tarefa de Miach. A sátira de Cairpré foi tão virulenta, que o rosto de Bress arrebentou todo em pústulas vermelhas. Era isso também uma mutilação que impedia um rei de continuar reinando. Os Danna exigiram que ele renunciasse, e Nuada, novamente perfeito pelas mãos de Miach, reassumiu o reino.
Obrigado a deixar o trono, Bress procurou sua mãe Eri e lhe pediu que lhe declarasse quem era seu pai: Seu pai, ela disse, é Elathan, que me seqüestrou secretamente em uma noite e, depois de me copular, deixou comigo esse anel para dar àquele em cujo dedo ele se ajustasse e, dizendo isso, colocou o anel no dedo de Bress. De posse do anel e do segredo de seu nascimento, ele retornou ao país dos Fomore, sob o mar. Queixou-se ao seu pai, Elathan, pedindo a ele que reunisse um exército para reconquistar o trono. Reuniram-se os maiorais em conselho: Elathan, Tethra, Balor-do-Olho-Maligno, Indech, todos os guerreiros e chefes. Decidiram organizar uma grande hoste, e levar a Irlanda para o fim do mar onde o povo de Danna nunca mais a encontrasse